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segunda-feira, 4 de novembro de 2013

A fantástica história dos judeus de Faro




Regressados após a Inquisição, investiram, criaram empregos e dinamizaram a capital algarvia. 






Os dezoito ciprestes existentes ao longo da fachada ondulam ao vento, tapando os muros altos que circundam e delimitam o terreno. Transpomos o portão, e uma pequena sirene interrompe o silêncio, denunciando a nossa presença. À nossa frente, espalham-se 107 túmulos de pedra. Estamos no Cemitério Judaico de Faro, classificado como local de interesse público no registo de monumentos nacionais. O espaço, localizado na zona norte da cidade de Faro, entre o hospital distrital e o estádio de São Luís, passa despercebido da maioria dos transeuntes que por aqui circulam diariamente, muitos dos quais desconhecem a sua existência. E mesmo os que sabem desconhecem a história que estes muros encerram.
Nem fazem ideia de até que ponto a história da cidade se confunde com a história da comunidade judaica que ali existe desde a Idade Média. Uma história que só foi preservada graças aos esforços de um judeu nascido em Portugal, mas radicado nos Estados Unidos, que criou um fundo para a recuperação do cemitério.
Conduzidos pelo senhor António Valente, (investigador na empresa Av Print - Centro Histórico Judaico de Faro), entramos numa viagem pela História.





António Valente






Uma pedra tumular datada de 1315 com o nome de Josef Dotomb, que se supõe ter sido rabino, foi encontrada num espaldão militar onde se situa precisamente o Cemitério Judaico de Faro e que é, ao mesmo tempo, Centro Histórico Judaico de Faro. Esta lápide comprova a presença dos judeus em Faro na Idade Média, mas os historiadores admitem que essa presença pode ser muito anterior.

Há registos da presença de judeus antes da chegada dos romanos, como consequência da primeira diáspora do povo hebreu no século I, quando a Palestina passou a província romana. Empreendedores, depressa se estabeleceram criando uma comunidade pujante, e muito activa, tendo sido mesmo os responsáveis pela introdução da tipografia em Portugal. Foi Samuel Gacon, um dos muitos judeus que por volta de 1486 se instalaram em Portugal fugidos da inquisição espanhola, que imprimiu o primeiro incunábulo português. O livro foi impresso na sua oficina, na Judiaria de Faro, em 30 de Junho de 1487. Também imprimiu o Talmude, com O Tratado do Divórcio e Tratado dos Juramentos. Mas em 1496 a tranquilidade e a paz de que usufruíam no Algarve teve um fim abrupto devido ao édito de expulsão de D. Manuel, em consequência do seu casamento com a princesa Isabel de Espanha. O contrato de casamento incluía uma cláusula que exigia a expulsão dos hereges – mouros e judeus – do território português.


O rei tentou que a princesa reconsiderasse, pois precisava dos capitais e do conhecimento técnico dos judeus para o seu projecto de desenvolvimento de Portugal, mas de nada valeu. Em 5 de Dezembro de 1496, D. Manuel assinou mesmo o Édito de Expulsão. Mais tarde, o rei arrepende-se da expulsão dos judeus e resolve forçá-los à conversão para se manterem no território, visto que a população de Portugal nos finais do século XV era de 1 400 000 pessoas, representando os judeus 20% dessa população, que maioritariamente era constituída por artistas, artesãos, homens de letras, negociantes, escrivães, médicos, matemáticos, astrónomos, cartógrafos, etc.

Estes judeus, «forçados à conversão», na primeira oportunidade fogem para a Holanda e aí vão constituir a mais importante comunidade judaica do norte da Europa.
Cerca de trezentos anos mais tarde, após a tremenda devastação provocada pelo terramoto de 1755, o Marquês de Pombal decidiu convidar os descendentes desses judeus a regressarem a Portugal, e ajudarem a dinamizar a economia do nosso país.
Por volta de 1780, começaram a chegar os primeiros descendentes, vindos de Marrocos e Gibraltar. Foram adquirindo algumas propriedades, mas só se estabeleceram definitivamente a partir do início do século XIX: «Assim que chegaram aqui a Faro, constituíram uma comunidade com 60 famílias, e começaram a dedicar-se ao comércio local de tecidos, cereais, cortiça, quinquilharia, ferramentas, drogaria, relojoaria e madeiras», explicou às Selecções António Valente.





(Pedras sepulcrais do cemitério judaico de Faro)





Além do comércio, os descendentes dos primeiros judeus algarvios investiram também na indústria, com a instalação de várias fábricas que empregavam centenas de pessoas: «Instalaram fábricas de rolhas de cortiça, de cigarrilhas e também de conservas de peixe. Tinham também negócios de importação de carvão, directamente de Newcastle e de exportação, nomeadamente figos, amêndoas e alfarrobas, para França, Inglaterra e Gibraltar», avança António Valente.

Intitulando-se «retornados», chamaram à cidade de Faro a nova Jerusalém, e depressa se tornaram a principal comunidade, fruto da sua capacidade financeira e da preparação para os negócios. Num país onde grassava o analfabetismo, estes judeus falavam cinco línguas: hebraico, português, inglês, espanhol, árabe, francês e ladino, que facilitava os contactos negociais com o estrangeiro.
E apesar da sua crescente importância na economia do Portugal de então, a comunidade judaica não podia ter a posse de propriedades, um privilégio concedido em exclusivo, à época, à Igreja Católica. Perante a necessidade de ter um espaço para enterramento dos seus mortos, a comunidade decidiu comprar um terreno para esse fim.


Como não o podia fazer em seu nome, o terreno foi comprado em nome de três membros da comunidade: Samuel Amram, Moisés Sequerra e Josef Sicsu. «O terreno para o cemitério foi comprado em 1851, tendo ficado registado como “Campo de Judeus”, o que revela que era tácito que se destinava a um cemitério, porque, na época, os cemitérios tinham essa designação. Por outro lado, o primeiro enterramento no local foi o de um antigo rabino, Josef Toledano, e aconteceu em 1838. Isso é revelador do propósito da compra. Foi feito por três membros da comunidade, mas para a comunidade, com a ideia de construir um cemitério», esclarece José Ruah, um dos responsáveis da Comunidade Israelita de Lisboa, entidade que gere o cemitério.






Com a extinção das ordens religiosas em 1834, a comunidade judaica de Faro ganhou outra visibilidade e projecção na vida da cidade, com o nascimento de novas indústrias. O Convento de Nossa Senhora da Assunção foi extinto, e o espaço passou a ser usado como armazém de artes de pesca a barricas de peixe salgado. Mas depressa ganhou outra finalidade: «Samuel Amram, que era um dos líderes da comunidade, comprou o convento e tentou instalar uma caldeira para cozer cortiça, mas o governo da Coroa não autorizou, porque era dentro da cidade e havia o risco de incêndios.

Depois da morte de Samuel Amram, é o seu filho Abraham Amram, fazendo-se representar pela companhia de seguros Liverpool contra Fogo, que vai estabelecer no referido convento uma fábrica de cortiça, que empregava 110 homens. Inicialmente a Coroa nem autorizava a fábrica, mas como ele apresentou uma garantia de uma companhia de seguros, deram autorização para instalar a fábrica», conta António Valente.
A importância da comunidade judaica ficou também patente na visita de D. Carlos e da restante família real a Faro, para a inauguração da estação ferroviária da cidade: «O Bispo não dispunha de condições para receber o rei, e foi Samuel Amram quem emprestou tudo o que ele precisava, desde camas, louças, mobiliário, e até empregados para o servirem. Foi tudo para o Paço Episcopal», revela António Valente. Com o advento do século XX, começa também o declínio da pujante comunidade judaica de Faro.

Uma nova geração de judeus, filhos dos «retornados» a Faro, começou a sair para poder concluir os seus cursos superiores, uma vez que a cidade não dispunha de universidade. Uns foram para Lisboa, mas a maioria foi para Londres e para os Estados Unidos. E a maior parte deles já não regressou.
Ao mesmo tempo, aconteceu a grande depressão do final dos anos 20 do século passado, que levou à falência de muitas das empresas da região que eram propriedade de famílias judias. E da imensa comunidade restou meia dúzia de pessoas, até à sua extinção no final da década de 60. Em 1965, Semtob Deiblatt Sequerra, o último líder da comunidade, acertou com a Câmara local a manutenção do espaço do cemitério, para garantir a dignidade da necrópole. Mas o espaço foi votado ao abandono até 1990, quando Isaac Bitton, descendente da comunidade de Faro mas radicado nos Estados Unidos, visitou o cemitério e ficou chocado com a sua degradação.






Regressou aos EUA e aí criou a Faro Cemetery Restoration Fund, Inc., organização que no terreno era gerida por Ralf Pinto, descendente de judeus que fugiram para a Holanda no século XIV, e que mais tarde se radicou na África do Sul, após o que se instalou em Portimão.

Três anos depois, o cemitério foi reaberto ao público numa cerimónia de rededicação que contou com a presença do então presidente da República, Mário Soares, que homenageou assim o contributo da comunidade judaica para o desenvolvimento do Algarve. Na ocasião, plantou o primeiro dos dezoito ciprestes existentes na fachada do cemitério, e que constituem uma homenagem viva a Aristides de Sousa Mendes, o cônsul português de Bordéus que salvou 30 mil pessoas do Holocausto. Dessas, 10 mil eram judeus: «Na escrita hebraica antiga não há números, e dezoito escreve-se chai, que significa “vida”, daí o significado de serem dezoito árvores, porque ele salvou 30 mil vidas», explica José Ruah às Selecções.




Fotografias: Centro Histórico Judaico de Faro 
Comunidade Israelita de Lisboa


Fonte: www.seleccoes.pt/a-fantástica-historia-dos-judeus-de-faro